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Channel: Biologia Evolutiva » sequência evolutiva
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Entre dois mundos

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Recentemente um colega veio, pela internet, pedir a minha opinião a respeito de uma questão de vestibular. Segundo ele, os professores estavam se digladiando, alguns a favor do gabarito oficial, outros contra. Quando ele me mandou a questão reconheci-a imediatamente. Eu já havia visto a questão, e já sabia que ela possuía duas opções corretas (coisa que, dependendo do concurso, faz com que a questão seja anulada). Dei minha opinião, com a qual ele concordou, mas me disse que a polêmica continuava. Felizmente, estou a três mil quilômetros dessa briga…

Eis a questão, do vestibular da Uffrj de 2000:

A seguir estão representadas três sequências de aminoácidos de proteínas retiradas de diferentes espécies (A, B e C).

espécie A:

MET – ARG – LEU – LEU – VAL – GLU – HIS – ARG – ALA – ARG – LEU – PHE – PRO – LEU

espécie B:

MET – ARG – LEU – ARG – VAL – GLU – HIS – ALA – ARG – ARG – ALA – PHE – PRO – LEU

espécie C:

MET – ARG – LEU – ARG – VAL – GLU – HIS – ALA – ALA – ARG – ALA– PHE – PRO – LEU

Admitindo-se um ancestral comum para as três espécies, a árvore filogenética que melhor expressa o parentesco evolutivo entre as três é:

As opções dadas foram as seguintes:

10006590_315811448567106_1197201609_o

Muito bem, não me interessa aqui discutir a elaboração da questão propriamente dita, nem comentar o uso de comparações moleculares para construção de filogenias (coisa que, isolada e dissociada de outras evidências, é algo bastante perigoso). Quero comentar apenas as opções dadas: não há nenhuma dúvida de que o cladograma da opção b e o cladograma da opção d são completamente iguais. A questão deveria, portanto, ter duas respostas corretas, B e D, ou então ter sido anulada. Mas, até onde eu saiba,o gabarito oficial continuou sendo apenas a letra d.

O que algumas pessoas podem ter pensado é algo mais ou menos neste sentido: “Entre A e B há 4 aminoácidos distintos, enquanto entre A e C há apenas 3 aminoácidos distintos. Logo, A é mais aparentado com C que com B”. Mas não, ele não é. Uma vez que definimos que B e C são mais aparentados entre si que qualquer um dos dois com A (apenas 1 aminoácido de diferença entre B e C), é preciso perceber que o parentesco entre A e C e o parentesco entre A e B é rigorosamente o mesmo: A relaciona-se tanto a B como a C através do ancestral comum de B e C. Além disso, o fato de no cladograma da opção d a espécie C estar para a esquerda, para o lado da espécie A, não quer dizer rigorosamente nada: como veremos, os cladogramas das opções b e d são completamente iguais.

Para entendermos porque os dois cladogramas são iguais, vamos rever alguns conceitos fundamentais.

A primeira coisa da qual devemos nos lembrar são as duas regras básicas da sistemática filogenética:

  1. Dados dois elementos, A e B, há um ancestral comum a ambos.
  2. Dados três elementos, A, B e C, há um ancestral que é comum a dois deles e que não é ancestral do terceiro.

Com essas duas regras simples, qualquer cladograma (sem politomia alguma) pode ser construído. E, a partir disso, eis a segundo ponto do qual devemos nos lembrar: a única coisa que um cladograma nos mostra é o grau de relação, ou de parentesco se assim quiserem, de um elemento com outro. Apenas isso, nada mais que isso. Um cladograma é um tipo particular de dendrograma. Há vários outros tipos de dendrogramas, que nos dizem em que momento no passado se situam os nós, ou qual a riqueza de espécies de cada ramo, etc. Mas um cladograma nos mostra apenas isto: a relação de parentesco entre seus elementos.

Os cladogramas das opções B e D, absolutamente iguais, nos mostram apenas que o elemento B é mais aparentado com o elemento C que com o elemento A. Em outras palavras, podemos dizer que B e C são mais aparentados entre si que qualquer um dos dois com o A. Uma terceira maneira de enunciar a mesma coisa seria dizer que B e C compartilham um ancestral que não é ancestral de A.

Lembre-se que, num cladograma, os nós giram livremente. Se tivermos um cladograma totalmente resolvido, sem politomias, com cinco nós, por exemplo, podemos desenhá-lo de 32 maneiras diferentes. A matemática aqui é simples: 2 elevado ao número de nós (no exemplo, 25=32). A maneira como escolhemos desenhar um cladograma não traz nenhuma informação adicional, nem tem importância alguma. Na verdade, há algo aqui a ser comentado: nossa tendência de colocar os organismos “mais evoluídos” – e gostaria de oferecer dez reais a quem fosse capaz de me explicar o que diabos significa “mais evoluído”, porque essa expressão não significa nada! – à direita é um perigoso resquício, resultado da concepção equivocada de que o ramo mais à direita num cladograma é o ramo “mais evoluído”.

filogenia4

Os nós num cladograma podem girar livremente (da série “compreendendo filogenias”, no Tumblr “Biologia Evolutiva”).

Até aqui o que escrevi é basicamente o atual paradigma da sistemática filogenética. Você pode questionar o que eu expliquei, na verdade você deve questionar (como disse Tyson no novo Cosmos, “questione tudo”), mas vai repetidamente chegar ao mesmo paradigma. Porém, o que eu escreverei daqui em diante é apenas a minha opinião, sinta-se completamente livre para discordar.

É muito interessante ver o atual movimento da biologia no Brasil (um pouco atrasado em relação à biologia no resto do mundo), com a biologia evolutiva e a sistemática filogenética finalmente se estabelecendo nos cursos universitários e no ensino médio, pouco a pouco, lentamente, mas ainda assim se estabelecendo. Conceitos absurdos como “escala evolutiva”, “sequência evolutiva”, “mais evoluído” e “menos evoluído” estão, felizmente, sendo abandonados. Mas ainda há um grande número de pessoas utilizando a abordagem antiga, ultrapassada, anacrônica. Bem, até aqui nenhuma novidade.

O problema, na minha opinião, é outro. Que a pessoa queira manter sua abordagem antiga, normalmente a abordagem na qual ela foi criada e educada, é algo relativamente normal, compreensível até. O problema, para mim, é a pessoa querer usar a abordagem nova, o paradigma mais recente, mas trazer todos os vícios e equívocos da abordagem ultrapassada. Você não pode ficar entre dois mundos: se é para entrar no mundo novo, se é para usar o paradigma novo, abandone os erros e os anacronismos do paradigma ultrapassado.

Os dois cladogramas são iguais. O fato de num deles C estar mais à direita e no outro B estar mais à direita não quer dizer nada: sequências evolutivas (entre espécies atualmente existentes) não existem! Esse é um conceito ultrapassado.

Se você quer aprender (e ensinar) sistemática filogenética, esqueça a scala natura. Esqueça, apague da sua mente, jogue fora, elimine conceitos absurdos, como “sequência evolutiva”. Caso contrário, você não só não compreenderá adequadamente a moderna biologia evolutiva como, o que é pior, poderá acabar dificultando a compreensão das outras pessoas.


Arquivado em:Ensino da evolução

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